terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Um Marrocos por descobrir

Marrocos fica ali no virar da esquina para quem vai até África. A ideia que temos deste país é construída a partir de ver imagens das Medinas estreitas, escuras e repletas de vendedores de tudo e mais alguma coisa. Também tinha criado a imagem das mil e uma noites e das odaliscas a dançarem numa grande sala de mármore durante um jantar nas mesas baixas cheias de Tangines. Foi com estas imagens que parti rumo a Marrocos, aterrando no aeroporto de Tanger. Ainda cá decidi qual seria o percurso que iria fazer como forma de conhecer um pouco de todas as variações geográficas que este país nos oferece. Sim, porque ali podemos ir do deserto à neve com poucas horas de carro. Esperava algumas contrariedades quando percebi que iria estar a viajar durante o Ramadão, mas os imprevistos ultrapassaram as minhas expectativas.

Quando cheguei a Tanger fui para Tétouan nas montanhas de Rif. De Tanger vi apenas a garagem dos autocarros e o pequeno aeroporto, porque a primeira noite estava programada para as montanhas. A viagem foi terrível. O autocarro ia repleto de pessoas e parava em muitas localidades. No entanto, valeu a pena para chegar no pôr de sol e ver Tétouan na encosta da montanha com os azuis ainda mais coloridos pelo sol de tons laranja. Tétouan é um paraíso hippie. Tem uma praça e uma pequena Medina que se estende até um rio. Os restaurantes e hotéis ficam à volta desta pequena praça. À noite as luzes são essencialmente de velas e de um ou outro candeeiro e isso torna o ambiente especial. Apesar de ser uma terra pequena que facilmente se conhece é rodeada de uma beleza que convida a ficar-se sentada apenas a ouvir os ruídos das montanhas. Existe ainda o azul espantoso deste lugar que nos faz ter vontade de andar pelas ruelas a tirar fotografias a torto e a direito. Com saudade parti dali, onde perdi o lenço que comprara na Índia e que me acompanhou nas viagens desde então.

A partir de Tétouan enfrentei a difícil missão de fazer durante parte do dia e durante toda a noite a travessia até Erfoud. Jantei em Fes enquanto esperava pelo próximo autocarro. Devo salientar que os condutores de Marrocos são violentos a conduzir. Nem consegui dormir bem durante as viagens. Chegar a Erfoud às 5 da manhã foi quase um pesadelo. De uma terra bonita passei para uma terra feia e sem qualquer identidade. Achei um lugar pouco atractivo e esperei pelo o primeiro autocarro da manhã e rumei em direcção a Risadin. Chegar a Risadin também não foi animador, porque os hotéis estavam fechados por causa do Ramadão, como aliás aconteceu noutros locais que tentei visitar. Lá fui num Grande Taxi para o deserto de Erg Chebbi, onde fiquei num hotel lindíssimo sobre as dunas em Merzouga. Naquele lugar não se via viva alma, excepto uns camelos ao longe e uns tratadores. Estava um calor abrasador, mas ao fim do dia começou uma tempestade de areia acompanhada de trovoado e aconteceu o inesperado no deserto, porque começou a chover. Foi uma tempestade assustadora e nem consegui assistir nem ao pôr-do-sol nem ao nascer do dia, porque chovia torrencialmente. A minha passagem pelo deserto foi no mínimo sui generis. Por esse motivo rumei antecipadamente para as montanhas onde tencionava ficar nas Gargantas do Gorge. Pelo caminho continuaram os ventos forte e uma vez mais atravessei uma vez mais uma tempestade de areia. No entanto, o pior foi chegar a uma estrada cortada pela água que descia das montanhas, ter de dar uma volta para chegar a Tinerhri mesmo na hora em que a tempestade descia das montanhas. Abrigada num beiral, pensei que ia ficar debaixo das terras que desciam montanha abaixo. Tive medo. E aquela localidade estava fantasmagórica com trovoadas em todas as montanhas em redor. Foi impossível ir às Gargantas porque a estrada estava cortada pela água. No dia seguinte deixei Tinerhri para ir para Marrakesh e atravessar assim o Grande Atlas. Depois da tempestade vem a bonança e estava um sol fantástico para a viagem. Prometi voltar para ver o por do sol no deserto e ver as Gargantas.

A bela Marrakesh. De encantos vários, mas de todos a Praça central é a mais indescritível. É o maior legado de cultura falada que é Património da Humanidade. A Medina esconde tesouros e tudo ali é cor. No entanto, muito mais turístico do que qualquer outro lugar que tinha estado antes. Sem dúvida que é um lugar óptimo para se estar durante uns dias a ouvir o burburinho das pessoas, dos encantadores de serpentes e de todas as pessoas que fazem ali a sua vida. É preciso ter cuidado com os vendedores que não nos deixam em paz e que quase nos convencem a comprar o que não queremos, mas apesar disso os fins de tarde ali são relaxantes e de nos ajudar a equilibrar o bem-estar.

Dali até Essaouira são apenas 4 horas de viagem. Ali encontra-se um dos maiores legados Portugueses deixados em Marrocos. É uma vila piscatória linda. Muito ventosa, mas com uma classe diferente das terras por onde antes tinha pernoitado. As lojas e o artesanato são mais organizados e o mar é calmo. Uma das imagens mais majestosas que guardo dali são os rapazes a jogarem bola ao entardecer na praia. Com camisolas coloridas, possivelmente dos seus ídolos do futebol e o mar sempre calmo.

Estava perto do fim e o avião partia de Casablanca. Uma vez mais de autocarro. Uma vez mais tentei ficar em El-Jadida mas os hotéis estavam todos fechados. Em Casablanca só se consegue vislumbrar o encanto de outrora. Dos dourados anos cinquenta que hão-de ter existido, porque actualmente a cidade parece um fantasma erguido nas costas do Atlântico, com belos resorts para marroquinos ricos mesmo ali ao lado dos bairros de lata. Uma cidade cheia de contradições e de opostos.

Marrocos, terra de cor e de contrastes. De ricos e pobres que não se misturam. De belas terras e das aldeias abandonadas no tempo. Em que os homens não falavam comigo com simpatia e as mulheres nem olhavam para mim. Terra do chá verde e dos Tangines. De pessoas pouco afáveis, mas de uma cultura rica em tradições. Com paisagens imensas, longínquas e tão diferentes. Fiquei com vontade de voltar ali, já ao virar da esquina e na entrada de África.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Com uma rosa presa no cabelo


"(...)Tinha chovido miúda e subtilmente, como em quase todos os dias 31 de Março em Atacama. Quando me pus de pé, vi que o deserto estava vermelho, intensamente vermelho, coberto de pequenas flores cor de sangue.
- Ali as tens. As rosas do deserto, as rosas de Atacama. (...) As plantas continuam ali, debaixo da terra salgada. Continuam lá e florescem uma vez por ano. Ao meio-dia já estarão calcinadas pelo sol".
Luís Sepúlveda, In As Rosas de Atacama

Esta foi a melhor frase que consegui encontrar para iniciar esta viagem iniciada na fronteira do Chile com a Argentina, algures no meio de um calor árido e seco. Passa-se a fronteira da Argentina e começa-se uma viagem pelo deserto até se chegar à fronteira do Chile já em San Pedro de Atacama. Parece que antes da fronteira a terra é de ninguém. O sistema fronteiriço avariado e, ali presa na fronteira na entrada daquela pequena cidade, apaixonei-me pelo deserto.

Acho que foram as Rosas de Atacama que me criaram o desejo de entrar no Chile pelo Norte. É um deserto de terra, rodeado por vulcões e sem vegetação. Parece que não tem estradas e durante a viagem perguntava-me como é que o autocarro sabia para onde ia. A cidade, vista da fronteira não é bonita. Pode até parecer feia, pequena e abandonada. O calor abundante fazia com que os cães andassem ali a vaguear pelas sombras e que parecesse ainda mais fantasmagoricamente abandonada. No entanto, sem que consiga explicar bem, apaixonei-me de imediato pelo lugar. Parece que entrei em modo contemplativo. Aconteceu-me três vezes e meia na vida, esta sensação de abandono do corpo. Este foi um desses locais, em que falar deixa de ser uma necessidade e, os olhos parecem flutuar de um lugar para o outro. Ainda agora, só por me lembrar daquele lugar sinto-me assim como que paralisada pela beleza do que vi, mas mais ainda pela sensação de paz que experimentei naquele lugar.

A cidade depois de se passar a porta de entrada, mostra-se em toda a sua beleza. Casas baixas de pedra e com cores em tons de laranja e azuis. Cheia de charme, vive de e para o turismo. No entanto, os turistas que a procuram fundem-se no espírito perdido do deserto. É importante sentir um pouco de tudo: conversar com os locais sobre tradições, histórias de fantasmas e da sua própria vida; conversar com os turistas que quando ali chegam carregam um infindável número de quilómetros percorridos e todas as experiências; percorrer o Salar, as lagoas, os Géisers, os vulcões. Na praça principal tinha um restaurante com um empregado que parecia um pirata. Vindo de uma aldeia onde as temperaturas chegam aos 50 graus e, desertificada desde que fecharam as minas. Todos os anos os antigos moradores vão lá para uma festa que dura mais do que um dia, como que para lembrar o passado que morreu com a mina. Com um amor por gatos indescritível e que contava velhas histórias sobre os fantasmas daquela zona. Ou então passar o dia deitada numa rede, a ler e a conversar por quem passava ali, para alugar um quarto ou já depois de se ter acomodado. Ou então, alugar um condutor que conduza aos belos lugares ali à volta: Ver os Flamingos no Salar de Atacama, subir até aos 4000 metros para ver as lagoas rodeadas de vulcões, passear na Quebrada de Jerez onde Inês de Suarez plantou as sementes levadas de Espanha. Despedi-me daquele deserto prometendo nunca o esquecer e se pudesse voltar um dia para me voltar a perder no seu espírito.

As viagens de autocarro naquelas terras não são fáceis, mas vêem-se as paisagens e como é que vão mudando conforme se anda para sul. Ir de autocarro de San Pedro de Atacama até ao centro do país permite ir apreciando as vinhas de um lado e o mar do outro. Senti-me num país mesmo estreito. Valparaíso foi a paragem final depois de 25 horas.

Quem nunca viu aquela peça de Pablo Neruda sobre os imigrantes que deixavam o Chile através da Baía de Valparaíso? Não considero imprescindível para conhecer a cidade dos sete patamares, mas ajuda a perceber a história daquele bocadinho de Chile de casas coloridas e onde Neruda tinha uma das suas casas no cimo desses patamares, onde viveu alguns anos e de onde via todos os anos o fogo do ano novo sobre o mar. Durante a ditadura de Pinochet, os artistas tinham uma subcultura naquela cidade, refugiando-se na escuridão das casas, com vistas maravilhosas sobre a baía. Depois da ditadura como forma de festejo, todas as sextas feiras, durante os anos seguintes, era habitual abrirem as suas portas para quem quisesse entrar e partilhar a sua arte. Actualmente já não é um costume tão difundido, mas mesmo assim, entrei na casa de dois artistas de idade avançada que anunciavam num papel pendurado na porta que davam lições de magia. Quase como que se tratasse de uma instalação no conforto da sua casa e onde todos, estranhos ou não, podiam entrar para conversar. Também não admira que tenham o Museu a Céu Aberto, uma vez que toda a cidade parece um museu de murais e grafites. Neste museu encontram-se alguns dos murais mais interessantes que a cidade tem. No entanto, por toda a cidade se sente o colorido da criatividade e da agitação cultural.

Ainda no rasto de Pablo Neruda, segui viagem até La Isla Negra. Uma vila piscatória, como outras por aquelas bandas, mas com o cunho de ter sido palco de muitas passagens do poeta, que gostava do mar. De Valparaíso até lá vêem-se várias praias semelhantes, mas se seguirmos para norte de Valparaíso também se vêem os pescadores nas suas vilas cinzentas. Parece-me importante, confessar que apesar de ser Verão e de estarmos perante o Pacífico, não se pode esperar por fazer praia. Existem explicações meteorológicas, que eu não vou explicar, mas que ensinam o porquê de uma neblina constante durante praticamente todo o dia.

Quando estava em Santiago do Chile, a capital deste país, lembrava-me apenas do deserto e do Norte. Como que uma vontade presa na garganta de não entrar no avião e de regressar novamente aos Andes e de seguir viagem para o outro lado. Rumo à promessa da Bolívia.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

De Buenos Aires à Patagónia; Da Patagónia à Quebrada de Humahuaca

De Buenos Aires à Patagónia. Da Patagónia à Quebrada de Humahuaca. Para se conhecer a Argentina tem de se ir de uma ponta à outra. Encontram-se paisagens e pessoas tão diferentes que não me deixa falar de uma só Argentina. O Tango ouve-se em Buenos Aires. O gelo corta a paisagem a sul, na Patagónia e, os incas deixaram os descendentes nas montanhas do Norte. Nenhum destes estilos se cruza em lugar algum. Tem de se percorrer o país de lés a lés para se entender o que é argentina para além da capital.


Se alguém me perguntasse onde deveria ficar em Buenos Aires não hesitaria em aconselhar o Bairro de San Telmo, entre La Boca e a Avenida 9 de Julho. Daqui pode ir-se a pé para todos os sítios interessantes da cidade. Este bairro de casas de início de século foi, em tempos, onde os artistas viviam, onde as casas de Tango se amontoavam e, onde a história das ruas esconde muitos amores. Tem pequenos restaurantes acolhedores, lojas de antiguidades e artesãos nas ruas. Varandas que dão para os jardins e onde se pode ver dançar o Tango. O ar é vermelho e preto. Entre a paixão e a dor. Nada é neutro. Ou se sente tudo ou não se sente. Os vinhos argentinos são quentes e aveludados. Tal como o ambiente que se vive na maioria dos locais desta capital da América Latina. A influência de um Paris de outros tempos é tão marcada que às vezes, esperava ouvir falar francês. Parece que a Evita Péron ainda vive por ali, ao virar de uma esquina qualquer ou que, Gardel está num clube qualquer e, que a sedução da cidade se mistura com a sedução de cada um. Vêem-se diferenças acentuadas entre as zonas da cidade. Não é aconselhável ir para La Boca ao entardecer como fui, porque depois não existem táxis naquela zona. Actualmente é apenas a beleza do Caminhito e a procura de um bairro que já não é realmente como se espera. Ali situam-se os bairros mais pobres e um dos estádios mais emblemáticos. O futebol é levado muito a sério entre os rivais e por isso é melhor ter cuidado em dias de jogo.


É com um sabor aveludado que se deixa Buenos Aires para se ir para a Patagónia. Passa-se do calor do vermelho para o Pólo Sul frio, gélido e branco. O avião começa a sobrevoar montanhas geladas, para aterrar nas margens de um lago azul imaculado, alimentado pelo Glaciar de Perito Moreno. Fiquei em El Calafate, que fica a um passo da Terra do Fogo. A Terra do Fogo só vi do avião. El Calafate é ponto de partida para vários passeios, e daqui pode ir-se até ao Parque dos Glaciares, onde se situa um dos principais glaciares. O dia começa cedo e, prolonga-se para lá das 22 horas. Com um frio seco no ar, o sol é quente. Uma vila demasiado turística, preparada como se fosse de papel e se pudesse desmontar, como descreveu um Espanhol que conheci dias depois no Norte. Contudo a serenidade que o ar fresco deixa antever é uma qualidade a aproveitar em terras do Sul. E claro que a magnificência do Glaciar é imperdível. São 60 metros de gelo maciço que se estendem por 15 Kms. A viagem de barco deixa o corpo gelado pela proximidade daquele gelo. De um lado o sol e o calor, do outro o gelo, as nuvens e o frio. São contrastes que se admira demoradamente. Aqui não é a cultura nem as pessoas que surpreendem, mas sim a cor do dia, do vento e do gelo. E foi depois disto que subi para o Norte.


Património Mundial a Quebrada de Humahuaca é encantadora. Já não se ouve o Tango, nem se sente o gelo. No norte da Argentina, o dia é quente e, as noites muito frias, mesmo no verão. Fiquei em Tilcara que fica mesmo no meio desta quebrada andina, onde se podem visitar as ruínas da Pucará, a vila de Humamhuaca, a Paleta do Pintor em Purmamarca e as Salinas Grandes, pela Nacional 40. As gentes são simples e vivem do turismo e da agricultura. Afastadas das grandes cidades, apresentam-se de vestimentas coloridas com os bebes às costas atados por tecidos, peles muito queimadas pelo sol e de uma simpatia tímida. A beleza desta província começa em Salta, pequena cidade verde e vai até às Salinas Grandes, passando pelas várias vilas pré- hispânicas. Não sei bem descrever qual destes pontos gostei mais. Fiquei impressionada com as ruínas disfarçadas no meio da montanha para defender durante as invasões; com a beleza do pôr-do-sol a bater nas rochas; com as diferentes cores que a terra tem; com a altitude da nacional 40 e, como seria de esperar com o modus vivendis nas Salinas Grandes, onde a extensão de sal é até perder de vistas e os homens que ali trabalham estão todos cobertos de panos brancos com as mãos ressequidas de trabalhar no sal.


Se vivesse na Argentina era em Buenos Aires, pelo colorido em tons de vermelho, pela sonoridade e cultura e pela beleza, mas teria de voltar ao Norte para encontrar as pessoas e a beleza Natural. De Buenos Aires, a capital da luxúria à Patagónia, a capital da solidão. Da capital da solidão até à Quebrada de Humahuaca, a capital da terra.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Índia da minha alma

Quem se apaixona pela Índia, como eu, vai amá-la para o resto da vida e voltar a encontrar-se com ela. Como dizia uma vendedora na praia de Vagator: “Se não for nesta, encontramo-nos noutra vida!
É um país onde os sentimentos vêm todos espreitar a luz do dia e a cor das noites. Deve ser por isso que se diz por lá que os turistas, ou amam o Seu país ou odeiam-no. Não se aceitam meios-termos na Índia. Para mim, é o lugar onde gostava de levar os filhos que ainda não tenho, para que vissem a simplicidade de um sorriso sincero, a bondade dos olhos pretos e a calma com que eles vivem cada dia. É o lugar ao qual eu gostava de levar aquela pessoa especial para saborear cada beijo, enquanto bebia um chá no Jagat Niwaas Hotel, com vistas soberbas sobre o lago Pikhola, ou enquanto passeava nas ruas estreitas de Jaisalmer ou aos entardeceres de Pushkar. Acho que o Mr. G., o dono do Suraja, percebeu o meu desejo de saborear acompanhada os beijos que aquela cidade me dava, pois despediu-se dizendo: “Espero que volte ao meu hotel e desta vez com um namorado… para aproveitar melhor a cidade…”. A vontade de partilhar com um amante o ar do país manteve-se ao longo de toda a viagem, desde Udaipur a Jaisalmer, de Pushkar a Jaipur. Assim como, nas praias paradisíacas de Goa.
Mas não são só as paisagens que dão o colorido à alma. É também o cheiro constante do incenso, os temperos da gastronomia, as cores das roupas. Os sentidos estão alerta, em constante encontro com a realidade envolvente. Deve ser por isso que o toque é tão soberbamente aproveitado pelos indianos. São subtis enquanto apertam a mão, quase carinhosos no toque com os dedos. Parece o país da celebração de todos os sentidos. Inicialmente, estranhei aquela necessidade de toque com as mãos. No regresso, senti a falta desse mesmo contacto.
É o encontro com o Hinduísmo e seus templos. Alguns dos momentos que me inebriaram aconteceram no confronto com a vida nos templos. As pessoas vão muito cedo para os templos, descalças, as mulheres de cara tapada, com os saris coloridos e sensuais, através dos quais se imagina mais do que se vê dos seus corpos. Os homens santos, muito magros, ficam sentados à entrada dos templos, ou nas Gahts, por vezes a fumarem (talvez ópio). Depois, começa-se a prestar atenção aos desenhos nas paredes dos templos e fica-se de boca entreaberta.
Percebe-se a origem do Kamasutra numa sociedade tão tradicional, em que uma mulher ocidental com uma roupa decotada ou apertada pode ser alvo de comportamentos abusivos por parte dos indianos. Os desenhos das paredes de alguns templos são reproduções de imagens sensuais do Kamasutra. Sem vergonha, o condutor de táxi chama a atenção para a minúcia dos desenhos. Percebe-se de que forma o sexo é ali associado à espiritualidade, percebe-se simultaneamente o respeito por ambos. A celebração do acto do amor. Antes de partir, um amigo que viveu e viajou pela Índia, disse-me que se eu ia sem namorado ia andar em permanente estado de inquietação erótica. Não me explicou porquê, mas riu-se com ar de quem sabia o que estava a dizer. Lá, percebi com exactidão o que ele me quis dizer. Percebi e dei-lhe total razão. Não sei se pelo clima quente, se pelas paisagens apelativas, mas, na verdade, pensa-se na companhia de um amante. Para uma mulher ocidental, regressar da Índia com o ego em alta não é difícil. Às vezes, pediam para tirar fotografias comigo; outras vezes, tiravam-nas à socapa. Em Jaipur, enquanto visitava um palácio tive de recusar algumas fotografias, porque tinha um grupo de 15 rapazes que as pretendiam individualmente. Na maioria das vezes tirava-as de bom grado e até comecei a pedir 10 rupias para me fotografarem. Não raras vezes, me pediam dinheiro para se deixarem fotografar, pelo que eu achei justo retribuir a exigência. Era uma forma de nos rirmos com a situação e de faláramos um pouco. Lembro-me do elogio que um homem me fez em Goa sobre um vestido cor-de-rosa: sincero e admirável. Acho que nunca me tinha sentido tão verdadeiramente admirada como me senti naquele entardecer em Small Vagator, enquanto me dirigia para uma esplanada, saboreando as cores sobre a praia e beber uma cerveja fresca para acabar com a sensação de calor que me percorria todo o corpo. Ficou igualmente marcada a cara do menino que me espreitou por entre os tecidos, embalados pelo vento numa loja de roupas. Decidi comprar algumas roupas para vestir enquanto viajava. De cores tão vivas quanto as que eles conseguem passar para os tecidos a partir das flores e das plantas. Para as experimentar o vendedor tinha de sair do interior da loja e tapar a entrada com um pano. Tentou, de várias formas, ficar dentro da loja com a desculpa de me ajudar, mas lá o convenci de que não precisava de ninguém para vestir uma túnica e umas calças. Era a minha nudez que o motivava, mas acabou por ser um rapazinho a vislumbrá-la, espreitando por entre os panos, enquanto o vento, mais forte, os afastava. A cara daquele rapaz vai ficar para sempre na minha memória… Entre a imagem da luxúria e da inocência estava a cara dele. Ou então, o homem no comboio, hipnotizado com as diferenças das minhas expressões. Adormeci, para logo acordar com a respiração pesada de alguém muito próximo da minha cara. Era o homem a observar-me pormenorizadamente como quem está a ver um animal muito raro.
O trajecto dos Palácios do Rajastão é, sem dúvida, um tropeço nas histórias dos Marajás, na grandiosidade das construções. Sair desta região e deparar com a grandiosidade do Taj Mahal em Agra, diminui todos os outros templos anteriormente vistos. Agra, a cidade onde as visitas turísticas são demasiado rápidas, porque as pessoas procuram apenas o romantismo que aquele lugar encerra em si mesmo, pela história que associamos à sua construção. Alguém construir um palácio tão oponente em honra da Sua amada que havia morrido, enquadra-se em todas as minhas ideias do amor romântico. É possível aprender-se diversas coisas enquanto se está de visita ao país. Negociei aulas de dança com duas indianas saltimbancos, mas como a certa altura não me senti confortável acabei por não ir com elas.
Enquanto turista de uma cultura totalmente diferente, como é a europeia, optei por ter algum cuidado sempre que a intuição me dava sinal de alerta. Não se sente medo das pessoas, mas é conveniente, tal como cá, usar de astúcia para se decidir o que fazer. Inicialmente, sente-se receio do trânsito. Porém, nunca me senti insegura com as pessoas. Pelo contrário, o que me deu mais prazer foi andar pelas ruas, autênticas feiras, e falar com as pessoas. São afáveis e sempre dispostas a falarem e a explicarem o que é isto, porque é aquilo, o que fazer ou onde ir a seguir. Apesar das ruas parecerem feiras, visitar a de Anjuna em Goa foi absolutamente fantástico. Foi lá que encontrei uma lisboeta, em absoluto estado de delírio com a Índia. As cores dos tecidos, os incensos e as especiarias misturavam-se com os feirantes de roupas pesadas e jóias em prata enormes, que não queriam que eu experimentasse por não serem adequadas para uma turista.


Na Índia, o cansaço é sempre compensado pelas cores, pela experiência nos contactos com as pessoas, pela visão dos contrastes entre o belo e o pobre (que se complementam sem se contradizerem). Chorei. Várias vezes chorei pelo confronto com a experiência. Lágrimas provocadas pelo excesso. Excesso de beleza. Excesso de pobreza. Excesso de partilha. Chorei com a dona de uma ourivesaria, enquanto os olhos dela se enchiam de lágrimas a ouvir a tradução do que lhe tinha escrito no livro de visitas. Chorei na viagem de Jodhpur quando um rapaz me mostrou um álbum de fotografias de umas férias dele com amigos, num amanhecer frio, dentro de uma camioneta quase a desfazer-se, com a única intenção de partilhar com uma estrangeira de ar exausto, depois de 6 horas num comboio, com um lenço colorido na cabeça e cabelos desgrenhados, o que tinha vivido.

Quem foi e se apaixonou, não volta a mesma pessoa. Não volta a deixar de apreciar os sentidos, cada um a seu tempo. Nem a vontade de partilhar o que sentiu. Como ao escrever este texto, enquanto ouço a música que ouvi naquela loja de Pushkar, sentada no chão para escolher os CD`s que queria comprar. Sempre com a calma exigida pelos indianos, sempre com os pés descalços e o altar ao fundo, o incenso e as flores amarelos e alaranjados a enfeitar. Resta-me a palavra, a única que aprendi de facto: Namasté*! Namasté à chegada e à partida.

Mil e uma noites em Istambul

Istambul é uma cidade para chegar e absorver cada azulejo, cada pedaço de história, cada pessoa que caminha nas ruas. É a cidade dos romances das “mil e uma noite”. Se me pedissem para descrever esta cidade Turca, em tempos conhecida por Constantinopla, diria que pode reacender qualquer chama de amor perdida na rotina. São as luzes, as vozes que chamam para as orações, os monumentos e a agitação das ruas contrastada com a disponibilidade dos habitantes se sentarem ao fim da tarde nos jardins. Por isto, acho que uma cidade imperdível.
Cheguei de manhã muito cedo e parecia que tinha caído numa realidade paralela. Tinha viajado durante 8 horas num autocarro de luxo, mas cheio de pessoas. Senti-me encurralada entre dois bancos. De Sofia (Bulgária) até Istambul (Turquia) durante a noite. Sem ver a paisagem e sem conseguir dormir. Istambul a cidade dos Sultões. Mas a cidade que vi era bem diferente daquilo que esperava. Uma cidade confusa, cheia de vendedores ambulantes logo pela manhã e sem alguém que falasse inglês para dar indicações. Parei numa padaria e comi um pão com queijo derretido, que parecia ser típico, mas que não percebi o nome. Fora do centro é difícil falar com os turcos, porque a maioria dos vendedores não falam inglês. O primeiro impacto foi duro, porque não tinha descansado, ninguém percebia as minhas perguntas, as ruas extremamente confusas e parecia que toda a agitação da cidade existia só para me ignorar.
Tinha decidido ficar em Sultanahamet, por se tratar da zona velha da cidade. Normalmente são as minhas preferidas, porque sente-se e respira-se a história local. Às vezes, o ranger das portas contam-nos segredos que de outras formas não saberíamos. Outras vezes, são as pessoas. Também tenho a ideia de que na parte velha das cidades, se vive mais nas ruas e por isso é mais fácil contactar pessoas. Apesar de durante o dia haver muitos turistas a visitar a Mesquita Azul, a Santa Sofia, o Topkapi, a Cisterna das 1001 Colunas e a zona do Hipódromo, com o anoitecer aquele centro é tomado pelos residentes. Saem para a rua para jogar gamão, comer um gelado ou simplesmente ficar sentado numa sombra a ver o tempo passar. Sabe bem ficar sentado nos jardins de Sultanahamet a ver as famílias a passarem, os namorados de mãos dadas e os poucos turistas que passam àquela hora. Ver as cores do entardecer que fazem com que os edifícios fiquem mais dourados, ouvir a chamada para a oração e ficar sentada apenas a imaginar como seria a vida ali, há muitos anos atrás. Comprar cerejas e ficar sentada a comê-las é um momento que dificilmente se esquece. As cerejas turcas são maravilhosas. Jantar num dos vários terraços existentes com vistas sobre Sultanahamet. Ver a Santa Sofia e a Mesquita Azul iluminados recortando o céu estrelado. Sentada em almofadas, à luz de velas e com o vento a refrescar a pele. Uma salada de sabores diferentes. E de repente, senti-me recuar no tempo. Comecei a ouvir os cânticos de ecoarem que saíam magicamente dos minaretes e fechei os olhos para saborear o momento. Antes tinha-me perdido nas ruas. Assistido a festas de casamento, escondidas por trás dos portões dos restaurantes onde se ouviam músicas árabes. Descobri um café simpático no meio de uma muralha que não servia bebidas alcoólicas, por motivos religiosos. E desci até à marginal do Mar de Marmara. Onde estavam mulheres a cozinhar em fogareiros, enquanto os homens pescavam. A marginal tem um trânsito caótico, mas é possível dar um passeio agradável e ver como é que as pessoas vivem a proximidade com o mar. Provavelmente a melhor hora para o fazer é o entardecer, porque parece que as pessoas vão para lá para fugir ao calor das casas e à agitação da cidade. Além de que as cores do pôr-do-sol dão uma perspectiva dourada às casas, tornando as vistas mais agradáveis.
Quem está em Sultanahmet chega rapidamente ao Grande Bazar. É um quarteirão cheio de lojas e vendedores na rua. Pode parar-se no cimo de uma rua e ficar a observar-se o vai-e-vém de pessoas e depara-se com um espectáculo de cores que certamente não esquecerá. Os cheiros a especiarias e chás enchem os espaços como se tivessem vida própria. Ao contrário do que se possa pensar, é um lugar limpo e asseado, com as lojas bem arrumadas. Confesso que fiquei um pouco desiludida com isso, porque parece que está demasiado arrumado para os turistas. Não confirmou a imagem que eu tinha dos bazares árabes. O espaço ocupado pelo Grande Bazar é labiríntico, mas compensa procurar a zona de cafés, e ficar ali sentado a ver a agitação do mercado. Outro dos pontos interessantes é o bazar das especiarias, com cores intensas, chás e todo o tipo de cheiros imperceptíveis ao nosso nariz pouco treinado para separar e classificar os odores. Os vendedores mostram-nos o chá do amor, os “viagras” naturais e outras substâncias para curar todo o tipo de males. São extremamente insistentes no que diz respeito a fazermos compras, mas alguns têm piada com o que dizem para cativar os turistas e é interessante parar e comprar algumas coisas para se perceber como é que funcionam. Trouxe chá tradicional de maçã. Muito saboroso. Com o Mar de Marmara e o estreito do Bósforo a água surge como uma das atracções para quem visita a cidade. Quem não tiver medo dos enjoos de andar de barco, pode optar por várias soluções.
Desde Cruzeiros pelo Bósforo, até se avistar o Mar Negro, a cruzeiros no Mar de Marmara até às Ilhas Princesa. Pode optar-se por barcos de recreio essencialmente preparados para os turistas onde se tem a possibilidade de jantar ou, optar-se pelos barcos comuns que ligam vários pontos em Istambul ou aldeias vizinhas. Optei sempre pela segunda hipótese, que apesar de não ser tão cómoda, permitia um contacto mais próximo com a cultura turca. A Sirkeci é a zona onde fica a estação onde o Expresso do Oriente finaliza a sua jornada. É igualmente onde fica o porto de embarque para qualquer uma destas soluções. Tem uma agitação de pessoas muito confusa para quem chega. Aconselho algum tempo a observar para que se consiga absorver e perceber o local. Não é fácil perceber onde é que embarca para o Bósforo ou onde se embarca para as ilhas Princesa. Não é fácil perceber os horários do transporte, nem encontrar alguém para explicar. É preciso ter paciência com os promotores das viagens de recreio que não nos deixam em paz. Mas tudo isto vale a pena, porque uma vez mais parece que a cidade vive em permanente relação com a água. Além de que as viagens pelo Bósforo são magníficas e é importante conhecer a realidade calma e parada das ilhas Princesa. O Bósforo permite ver Istambul Europeu a contrastar com Istambul Asiático. É uma viagem com vistas lindas. Alguns palácios de parar a respiração. Complexos habitacionais luxuosos. Pequenas aldeias piscatórias com um conceito diferente da grande cidade. E tons azuis da água em contraste com o verde das margens. Uma viagem comprida até se avistar o Mar Morto. Saí na última paragem do barco e deu tempo para fazer compras locais assim como beber uma cerveja na margem e fumar aquele cigarro de prazer conseguido apenas pela leveza da água. Avistam-se crianças a brincar na água, velhos a cozer redes, mulheres a oferecerem artesanato para vender. Pessoas mais simpáticas do que em Istambul. Mais rústicas.
As Ilhas Princesa oferecem a possibilidade de fazer praia e de passar umas horas num ambiente diferente da cidade. Quase não têm carros. O tempo passa devagar e pode ficar-se apenas a sentir o mar, ver Istambul ao longe e a beber qualquer coisa fresco antes de voltar a apanhar um barco de regresso para a cidade dos Sultões. É um conjunto de ilhas, com características diferentes e uma arquitectura particular, conforme o local de origem das pessoas que fazem férias em cada um dos lugares. No entanto não se tratam de uma instâncias de luxo, mas antes de vilarejos pobres. Vim embora com a imagem de uma velha árabe a acender o cigarro de manhã muito cedo enquanto tomava o pequeno-almoço num velho café de bancos baixos e de cores intensas. Com a imagem do confronto de imagens entre a Ásia e a Europa.
Vim embora com a recordação do amor mais sublime de alguém por um animal de estimação. Aconteceu numa loja. Estava a passar quando reparei no gato mais bonito que algum dia vi. Entrei, fingindo olhar para as coisas, apesar de só conseguir ver o gato. O dono da loja perguntou-me se eu pretendia comprar alguma coisa, ao que lhe respondi, em tom de brincadeira, que pretendia comprar o gato. Pegou naquela que me disse chamar-se Cármen e não a voltou a largar, falando da gata com um orgulho de pai. Não lhe tirei nenhuma fotografia e curiosamente a gata não voltou a estar na loja. Coincidência ou medo da minha cobiça. Contudo não esqueci a imagem da gata no colo de um homem adulto que parecia uma criança com o seu brinquedo predilecto. Se fechar os olhos consigo visualizar a expressão do homem árabe cheio de carinho nos seus olhos negros.
Istambul tem um número imenso de atracções. Desde os banhos turcos que infelizmente não fui, aos museus; da história gravada nas ruas, aos palácios; da zona asiática, ao porto de embarque; mas acima de tudo pela vida agitada das ruas, pelas rotinas dos seus habitantes. É um local onde facilmente nos perdemos e esquecemos a nossa vida quotidiana. Uma cidade óptima para descansar e da mesma maneira encontrar um pedaço de história do reino Bizantino e de todas as Suas riquezas. Estar na Europa e numa cidade digna das Mil e Uma Noite. Segura para os turistas, mas actualmente pouco visitada por estes. Isto traz a vantagem de se poder sentir o pulsar de outra cultura. Sim, porque Istambul apesar de ter uma parte europeia, tem uma alma cultural distante daquela que se encontra na maioria das cidades europeias.

O triângulo da Europa Central

Senti uma alma diferente em cada cidade. Cracóvia, Praga e Budapeste constituem um triângulo de histórias na Europa Central. Viajei de comboio entre estas elas. Sempre durante a noite para aproveitar mais os dias. Fiquei com alguma nostalgia de não ter viajado durante o dia para aproveitar a paisagem, mas foi a minha opção de viagem.
Comecei em Cracóvia. È um charme de cidade. Fiquei alojada no Flamingo Hostel, muito perto da praça central, com um ambiente simpático e boas condições. A partir dali é possível conhecer a cidade a caminhar, misturada com os turistas e os habitantes locais. Cracóvia foi uma das poucas cidades Polacas completamente poupadas dos ataques alemães durante a Segunda Grande Guerra. É um dos motivos que faz dela um lugar especial e místico. Existe uma lenda que diz que Shiva deixou uma pedra lá, o que faz com que os Hindus a visitem com regularidade e que outras pessoas procurem paz espiritual naquela cidade. Dizem que foi um lugar protegido por um ente superior e por isso não foi destruída. Haja verdade ou não na lenda, na verdade está intacta e passou pela guerra sem a destruição que a caracterizou por muitas cidades europeias. Cheguei à estação de comboios com recantos de Arte Nova de manhã cedo e já está muito movimentada. È possível ir a pé até ao centro da cidade por ruas antigas que deixam no ar o cheiro de outros tempos. Não é preciso dizerem onde é o centro, porque percebe-se pela grandiosidade da praça medieval. Comece pela magnífica praça central, a Rynek Glówny rodeada de cafés e restaurantes, ou então fique apenas sentado a olhar as pessoas que passam. A igreja, o mercado fechado, as senhoras que vendem flores e as cores do amanhecer. Depois de pousar a mochila no quarto é a hora de sair para conhecer. É possível conhecer tudo andando a pé. Vêem-se várias pessoas de bicicleta e poucos carros. Da praça até ao castelo de Wawel Hill, são apenas umas ruas. Quando cheguei a Wawel Hill fui presenteada por uma vista magnífica sobre o rio Vístula, o rio maior da Polónia que a corta em duas partes. Como Cracóvia é uma cidade muito religiosa tive a sorte de assistir a cerimónias na catedral de Wawel Hill, com a procissão e os devotos cristãos em trajes de festa. De lá soube-me bem parar nas margens do rio, sentada na relva, onde alguns polacos aproveitavam para apanharem sol. Passei uma ou duas horas sentada a ler debaixo de uma árvore. As margens do rio têm um encantamento em mim, como vim a verificar mais tarde nas margens do Rio Vltava e do Danúbio. Além do encantamento das margens do rio, aquele lugar liberta uma paz mística para quem está à procura de descansar. De lá fiquei a meio caminho para a zona do Kazimierz, onde se podem encontrar vestígios dos bairros Judeus, uma vez que foi onde viveram até à Segunda Guerra Mundial. Curiosamente mantêm Sinagogas que passaram imunes aos ataques Nazis, sendo a mais antiga do século XV. Esta zona é diferente do centro da cidade em termos arquitectónicos, assim como das pessoas que se veêm nas ruas. Pareceu-me mais artística e frequentada por pessoas com modus vivendis alternativo. Os cafés são mais típicos e antigos do que no centro, guardando a memória de outras vidas que por lá se construíram. Se tivesse de escolher onde ficar, seria ali sem sombra de dúvida. É importante andar nas ruas e espreitar as entradas das casas, porque muitas escondem pequenas esplanadas. Todos com um encanto próprio, com uma decoração adequada e com pessoas que se sentam para saborear a sombra. Se me imaginasse a escolher um lugar para procurar paz de espírito aliado à beleza do lugar, penso que Cracóvia seria sem dúvida um destino a ter em conta.
Com alguma pena, deixei Cracóvia em direcção a Praga, mas a viagem continuava e a ideia era seguir um trilho que terminaria em Budapeste. O trilho dos grandes rios da Europa Central. Voltei a chegar a Praga de manhã cedo e tive de procurar alojamento. É importante reservar com antecedência porque é uma cidade muito turística e os hotéis estavam quase todos cheios. Quando finalmente arranjei onde dormir, pousei as malas e lá fui a pé conhecer esta cidade de encantamento de conto de fadas. Esta cidade é grandiosa: Os edifícios são altos e com fachadas muito bem tratadas. Parece que anda sempre um zelador por toda a cidade a pintar aqui e ali para ter sempre um aspecto novo. O centro da cidade é medieval e por isso as ruas cruzam-se levando a que pareça um labirinto que se move por forças estranhas só para me confundir. Nos vários dias que andei por ali a pé nunca fui capaz de saber onde estava. Nem com o mapa da cidade na mão. De um lado do Rio Vltava a zona do castelo e Malá Strana e do outro lado do rio, Staré Mestro ou a cidade velha. Para atravessar encontram-se várias pontes, mas a mais interessante é Charles Bridge, talvez por ter artistas ao longo do percurso e ser uma das mais bonitas. Por outro lado, em dias de calor e principalmente ao fim de semana é muito difícil fazer a travessia porque a multidão é imensa. Contudo vale a pena parar por ali, quer seja durante o dia, quer seja durante a noite, porque fica-se mesmo a meio entre as duas partes de Praga e pode-se imaginar todo um conto de fadas a partir dali. Subi até ao Castelo, sem que no caminho parasse num dos belos cafés para me refrescar e aproveitar os raios do sol que batiam nas casas pintadas de cores animadas. A zona do castelo parece uma pequena vila típica, com casas pequeninas, onde se pode imaginar Kafka a deambular por ali. Dali aproveitei a vista sobre a cidade e a magnificência do castelo e dos jardins. Gastei um dia a percorrer as pequenas ruas e apreciar cada pedaço de casa com um estilo diferente das do outro lado do rio. Mas foi do outro lado que me senti uma princesa presa nas minhas sapatilhas cor-de-rosa. À noite, enquanto via as luzes que iluminam o rio e todo o castelo: sem dúvida um dos momentos mais soberbos da estadia na cidade. Na cidade velha encontram-se edifícios lindos com as fachadas em Arte Nova ou Estilo Gótico cuidadosamente guardados para manter todo o glamour dos tempos do império. Não me admira que tenha sido tão cobiçada por vários impérios. Cada porta, cada maçaneta, cada janela, cada candeeiro é uma pequena ode à cultura. As flores por todo lado a pintarem as cores paredes de outras cores. O ideal é manter os olhos bem abertos para espreitar para dentro dos cafés e ver a decoração ou então entrar e ficar a beber uma cerveja no entardecer enquanto se descansam os pés. Se me pedissem para descrever em duas palavras a cidade de Praga, diria apenas “É um conto de fadas” ao ar livre e sem figuras animadas de outras histórias. Com música, marionetas e teatro do negro mesmo à mão de quem queira uma experiência diferente das habituais quando se vai de férias. Uma vez mais chegou a noite e peguei na mochila para ir apanhar o comboio que me levou a Budapeste. A expectativa a aumentar depois de Cracóvia e Praga. E uma sensação de que teria de voltar a ver Praga, mas da próxima vez com menos turistas para sentir o cheiro mais intenso da Republica Checa. Porque admito que se tem de estar preparado para enfrentar muitos turistas. Na despedida, Praga promete ser melhor para a próxima vez que a visitar. Sussurrou-me promessas de mais romantismo e de mais solidão para a próxima visita.
“Budapeste aqui estou eu!” – Foi o que me apeteceu dizer à chegada da estação de comboios. Quando cheguei a Budapeste tive de abrir bem os olhos para conseguir assimilar as discrepâncias entre os velhos edifícios de outrora e os novos edifícios com fachadas espelhadas. No primeiro impacto fica-se chocado. Eu fiquei chocada quando vi. Tive de preparar os olhos porque percebi que ali ao contrário das outras cidades anteriores, esta não mantém o mesmo glamour parado no tempo. Em contrapartida, é nesta cidade que se encontram as pessoas mais simpáticas e onde se sente mais intensidade de vida. Parece que está a crescer. Parece que se quer virar para o ocidente com o que tem de bom e claro levando o menos positivo também. Cheguei cansada e decidi passar a tarde nos banhos termais e realmente é exactamente como tinha lido nos guias. Escolhi um dos mais antigos que fica situado no Danubius Hotel Gellért. Um hotel em Arte Nova com uma piscina interior toda em Arte Nova onde o sol entra pelos vitrais causando efeitos mágicos na água. Depois de uma tarde a descansar estava preparada para explorar os recantos da cidade. Entre autênticas relíquias do domínio soviético em vários pontos da cidade, o rio Danúbio, a ilha e o metro mais antigo da Europa passei um dia fantástico a recordar a história da Hungria. Na ilha do rio Danúbio avista-se a cidade, mas mais do que isso descansa-se e perde-se tempo da agitação das ruas. Aproveitei para respirar ar puro e ficar sentada a ler com os olhos postos no Danúbio. De Buda trago as memórias medievais do castelo e arredores e de Peste o sabor dos cafés tradicionais. Diverti-me nas noites de Buda que conheci pelas mãos de um estudante alemão. E perdi-me a fotografar as pontes sobre um dos rios mais mediáticos na minha memória.
Abandonei Budapeste de avião. A vontade era tal que quase fiquei perdida a fumar no aeroporto enquanto esperava pela hora do embarque. Acho que estava demasiado afeiçoada às estações de comboios. Tinham sido uns dias muito bem passados naquele triângulo de cidades tão diferentes e tão próximas.

Auschwitz - Uma viagem ao passado.

Sentia o coração apertar-se cada vez que os quilómetros ficavam para trás. Para trás ficava Cracóvia e à medida que o autocarro avançava, aproximava-me de Auschwitz. Fiz uma retrospectiva sobre todos os filmes que vi sobre a Segunda Guerra Mundial. Depois lembrei-me dos programas que o Canal 2 transmitiu sobre a construção deste campo de concentração e sobre o de Birkenau. Passei a pente fino a minha memória sobre os acontecimentos que marcaram aqueles anos gelados da década de 40. E o coração sempre a diminuir. Sempre. Sempre. Pensei que iria ficar sem sangue, porque o coração desaparecia.
O autocarro finalmente chegou a Auschwitz. Parei uns metros a fumar um cigarro, enquanto esperava que a emoção abandonasse as pernas e finalmente chegasse aos olhos que estavam ansiosos por chorar. Já quase no fim do cigarro deu-me uma vontade de chorar inacreditável. Nem sei bem porquê. Tantos massacres ao longo da nossa história. Alguns mais recentes, alguns menos aparatosos mas igualmente chocantes. Parecia que ali tinha vontade de chorar por todos os massacres da história passada ou recente. Quase como se ali fosse a catedral de todos os sofrimentos, independentemente do povo, da raça ou dos motivos. Pus o som muito alto para evitar as vozes altas e sorridentes dos turistas que ali passeavam. Tentei alhear-me ao máximo das pessoas que riam, falavam ou brincavam. Não tirei os óculos de sol para evitar encontrar os olhos de outros e eles me pudessem ler o sofrimento que transportava enquanto estava ali. Não queria sequer lembrar-me que estavam ali outras pessoas para além de mim.
Auschwitz e depois Birkenau. O primeiro impressiona pelas exposições, pelas fotografias, pela realidade quase intacta das câmaras de gás, pelas celas solitárias, pelo arame farpado. O segundo impressiona pela extensão de perder de vista de casebres de madeira, pelo número sem fim de chaminés, pela linha do comboio que terminava ali mesmo, pela destruição das câmaras de gás para esconder talvez a vergonha do massacre. Auschwitz. É indescritível o que senti quando entrei na câmara de gás. Tão pequena. Com coisas escritas nas paredes, que não compreendi. E a porta? A porta blindada com um buraquinho, nem sei se para quem estava lá dentro olhar para a vida que deixava lá fora, se para quem estava da parte de fora ver os corpos estendidos no chão e os poder levar para o crematório. Não sei. Fui espreitar, como se estive dentro e vi tudo tão turvo. Ninguém precisa de um guia para cheirar a morte que paira naquelas paredes. Ou então entrar dentro de uma das casas e deparar-me com montes de óculos, de próteses, de pentes, de roupa e o que me fez realmente chorar, o monte de malas. Só conseguia imaginar as pessoas levarem as roupas naquelas malas e pensarem que iam para outra casa, quando na realidade não precisavam de mais nada, excepto deles próprios. Eles próprios, condenados. Enquanto caminhava ao longo das ruas vi uma menina loira vestida de vermelho, sozinha a brincar perto de umas escadas e adivinhem do que me lembrei. De uma das cenas que mais me marcou num filme sobre a Segunda Guerra Mundial.
Birkenau. O fim da linha do comboio era mesmo no local onde ficava um dos corredores da morte. Algumas das pessoas ficavam logo ali. Outras iam para as casernas em madeira. Tão frias e vazias de qualquer beleza. Iam esperar pela sua vez de caminharem pelo corredor da morte. Quando o autocarro se afastou daquele local, os meus olhos pararam de chorar para dar a oportunidade de pensar em como se foi capaz de pensar em exterminar raças. E a Polónia em redor tão verde, tão cheia de vida e de paz. Deixei de chorar e fiquei apenas a sentir o verde que me envolvia, sem deixar de pensar no que algumas pessoas sofrem por nascerem aqui ou ali, serem assim ou de outra maneira e em como se continua a perseguir algumas. É importante ver do ódio que somos capazes de carregar e de como somos capazes de ser geniais a partir dele. Porque ali é o genial do negro. Vale a pena ir para sentir onde somos capazes de chegar.