Sentia o coração apertar-se cada vez que os quilómetros ficavam para trás. Para trás ficava Cracóvia e à medida que o autocarro avançava, aproximava-me de Auschwitz. Fiz uma retrospectiva sobre todos os filmes que vi sobre a Segunda Guerra Mundial. Depois lembrei-me dos programas que o Canal 2 transmitiu sobre a construção deste campo de concentração e sobre o de Birkenau. Passei a pente fino a minha memória sobre os acontecimentos que marcaram aqueles anos gelados da década de 40. E o coração sempre a diminuir. Sempre. Sempre. Pensei que iria ficar sem sangue, porque o coração desaparecia.
O autocarro finalmente chegou a Auschwitz. Parei uns metros a fumar um cigarro, enquanto esperava que a emoção abandonasse as pernas e finalmente chegasse aos olhos que estavam ansiosos por chorar. Já quase no fim do cigarro deu-me uma vontade de chorar inacreditável. Nem sei bem porquê. Tantos massacres ao longo da nossa história. Alguns mais recentes, alguns menos aparatosos mas igualmente chocantes. Parecia que ali tinha vontade de chorar por todos os massacres da história passada ou recente. Quase como se ali fosse a catedral de todos os sofrimentos, independentemente do povo, da raça ou dos motivos. Pus o som muito alto para evitar as vozes altas e sorridentes dos turistas que ali passeavam. Tentei alhear-me ao máximo das pessoas que riam, falavam ou brincavam. Não tirei os óculos de sol para evitar encontrar os olhos de outros e eles me pudessem ler o sofrimento que transportava enquanto estava ali. Não queria sequer lembrar-me que estavam ali outras pessoas para além de mim.
Auschwitz e depois Birkenau. O primeiro impressiona pelas exposições, pelas fotografias, pela realidade quase intacta das câmaras de gás, pelas celas solitárias, pelo arame farpado. O segundo impressiona pela extensão de perder de vista de casebres de madeira, pelo número sem fim de chaminés, pela linha do comboio que terminava ali mesmo, pela destruição das câmaras de gás para esconder talvez a vergonha do massacre. Auschwitz. É indescritível o que senti quando entrei na câmara de gás. Tão pequena. Com coisas escritas nas paredes, que não compreendi. E a porta? A porta blindada com um buraquinho, nem sei se para quem estava lá dentro olhar para a vida que deixava lá fora, se para quem estava da parte de fora ver os corpos estendidos no chão e os poder levar para o crematório. Não sei. Fui espreitar, como se estive dentro e vi tudo tão turvo. Ninguém precisa de um guia para cheirar a morte que paira naquelas paredes. Ou então entrar dentro de uma das casas e deparar-me com montes de óculos, de próteses, de pentes, de roupa e o que me fez realmente chorar, o monte de malas. Só conseguia imaginar as pessoas levarem as roupas naquelas malas e pensarem que iam para outra casa, quando na realidade não precisavam de mais nada, excepto deles próprios. Eles próprios, condenados. Enquanto caminhava ao longo das ruas vi uma menina loira vestida de vermelho, sozinha a brincar perto de umas escadas e adivinhem do que me lembrei. De uma das cenas que mais me marcou num filme sobre a Segunda Guerra Mundial.
Birkenau. O fim da linha do comboio era mesmo no local onde ficava um dos corredores da morte. Algumas das pessoas ficavam logo ali. Outras iam para as casernas em madeira. Tão frias e vazias de qualquer beleza. Iam esperar pela sua vez de caminharem pelo corredor da morte. Quando o autocarro se afastou daquele local, os meus olhos pararam de chorar para dar a oportunidade de pensar em como se foi capaz de pensar em exterminar raças. E a Polónia em redor tão verde, tão cheia de vida e de paz. Deixei de chorar e fiquei apenas a sentir o verde que me envolvia, sem deixar de pensar no que algumas pessoas sofrem por nascerem aqui ou ali, serem assim ou de outra maneira e em como se continua a perseguir algumas. É importante ver do ódio que somos capazes de carregar e de como somos capazes de ser geniais a partir dele. Porque ali é o genial do negro. Vale a pena ir para sentir onde somos capazes de chegar.
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