Quem se apaixona pela Índia, como eu, vai amá-la para o resto da vida e voltar a encontrar-se com ela. Como dizia uma vendedora na praia de Vagator: “Se não for nesta, encontramo-nos noutra vida!
É um país onde os sentimentos vêm todos espreitar a luz do dia e a cor das noites. Deve ser por isso que se diz por lá que os turistas, ou amam o Seu país ou odeiam-no. Não se aceitam meios-termos na Índia. Para mim, é o lugar onde gostava de levar os filhos que ainda não tenho, para que vissem a simplicidade de um sorriso sincero, a bondade dos olhos pretos e a calma com que eles vivem cada dia. É o lugar ao qual eu gostava de levar aquela pessoa especial para saborear cada beijo, enquanto bebia um chá no Jagat Niwaas Hotel, com vistas soberbas sobre o lago Pikhola, ou enquanto passeava nas ruas estreitas de Jaisalmer ou aos entardeceres de Pushkar. Acho que o Mr. G., o dono do Suraja, percebeu o meu desejo de saborear acompanhada os beijos que aquela cidade me dava, pois despediu-se dizendo: “Espero que volte ao meu hotel e desta vez com um namorado… para aproveitar melhor a cidade…”. A vontade de partilhar com um amante o ar do país manteve-se ao longo de toda a viagem, desde Udaipur a Jaisalmer, de Pushkar a Jaipur. Assim como, nas praias paradisíacas de Goa.
Mas não são só as paisagens que dão o colorido à alma. É também o cheiro constante do incenso, os temperos da gastronomia, as cores das roupas. Os sentidos estão alerta, em constante encontro com a realidade envolvente. Deve ser por isso que o toque é tão soberbamente aproveitado pelos indianos. São subtis enquanto apertam a mão, quase carinhosos no toque com os dedos. Parece o país da celebração de todos os sentidos. Inicialmente, estranhei aquela necessidade de toque com as mãos. No regresso, senti a falta desse mesmo contacto.
É o encontro com o Hinduísmo e seus templos. Alguns dos momentos que me inebriaram aconteceram no confronto com a vida nos templos. As pessoas vão muito cedo para os templos, descalças, as mulheres de cara tapada, com os saris coloridos e sensuais, através dos quais se imagina mais do que se vê dos seus corpos. Os homens santos, muito magros, ficam sentados à entrada dos templos, ou nas Gahts, por vezes a fumarem (talvez ópio). Depois, começa-se a prestar atenção aos desenhos nas paredes dos templos e fica-se de boca entreaberta.
Percebe-se a origem do Kamasutra numa sociedade tão tradicional, em que uma mulher ocidental com uma roupa decotada ou apertada pode ser alvo de comportamentos abusivos por parte dos indianos. Os desenhos das paredes de alguns templos são reproduções de imagens sensuais do Kamasutra. Sem vergonha, o condutor de táxi chama a atenção para a minúcia dos desenhos. Percebe-se de que forma o sexo é ali associado à espiritualidade, percebe-se simultaneamente o respeito por ambos. A celebração do acto do amor. Antes de partir, um amigo que viveu e viajou pela Índia, disse-me que se eu ia sem namorado ia andar em permanente estado de inquietação erótica. Não me explicou porquê, mas riu-se com ar de quem sabia o que estava a dizer. Lá, percebi com exactidão o que ele me quis dizer. Percebi e dei-lhe total razão. Não sei se pelo clima quente, se pelas paisagens apelativas, mas, na verdade, pensa-se na companhia de um amante. Para uma mulher ocidental, regressar da Índia com o ego em alta não é difícil. Às vezes, pediam para tirar fotografias comigo; outras vezes, tiravam-nas à socapa. Em Jaipur, enquanto visitava um palácio tive de recusar algumas fotografias, porque tinha um grupo de 15 rapazes que as pretendiam individualmente. Na maioria das vezes tirava-as de bom grado e até comecei a pedir 10 rupias para me fotografarem. Não raras vezes, me pediam dinheiro para se deixarem fotografar, pelo que eu achei justo retribuir a exigência. Era uma forma de nos rirmos com a situação e de faláramos um pouco. Lembro-me do elogio que um homem me fez em Goa sobre um vestido cor-de-rosa: sincero e admirável. Acho que nunca me tinha sentido tão verdadeiramente admirada como me senti naquele entardecer em Small Vagator, enquanto me dirigia para uma esplanada, saboreando as cores sobre a praia e beber uma cerveja fresca para acabar com a sensação de calor que me percorria todo o corpo. Ficou igualmente marcada a cara do menino que me espreitou por entre os tecidos, embalados pelo vento numa loja de roupas. Decidi comprar algumas roupas para vestir enquanto viajava. De cores tão vivas quanto as que eles conseguem passar para os tecidos a partir das flores e das plantas. Para as experimentar o vendedor tinha de sair do interior da loja e tapar a entrada com um pano. Tentou, de várias formas, ficar dentro da loja com a desculpa de me ajudar, mas lá o convenci de que não precisava de ninguém para vestir uma túnica e umas calças. Era a minha nudez que o motivava, mas acabou por ser um rapazinho a vislumbrá-la, espreitando por entre os panos, enquanto o vento, mais forte, os afastava. A cara daquele rapaz vai ficar para sempre na minha memória… Entre a imagem da luxúria e da inocência estava a cara dele. Ou então, o homem no comboio, hipnotizado com as diferenças das minhas expressões. Adormeci, para logo acordar com a respiração pesada de alguém muito próximo da minha cara. Era o homem a observar-me pormenorizadamente como quem está a ver um animal muito raro.
O trajecto dos Palácios do Rajastão é, sem dúvida, um tropeço nas histórias dos Marajás, na grandiosidade das construções. Sair desta região e deparar com a grandiosidade do Taj Mahal em Agra, diminui todos os outros templos anteriormente vistos. Agra, a cidade onde as visitas turísticas são demasiado rápidas, porque as pessoas procuram apenas o romantismo que aquele lugar encerra em si mesmo, pela história que associamos à sua construção. Alguém construir um palácio tão oponente em honra da Sua amada que havia morrido, enquadra-se em todas as minhas ideias do amor romântico. É possível aprender-se diversas coisas enquanto se está de visita ao país. Negociei aulas de dança com duas indianas saltimbancos, mas como a certa altura não me senti confortável acabei por não ir com elas.
Enquanto turista de uma cultura totalmente diferente, como é a europeia, optei por ter algum cuidado sempre que a intuição me dava sinal de alerta. Não se sente medo das pessoas, mas é conveniente, tal como cá, usar de astúcia para se decidir o que fazer. Inicialmente, sente-se receio do trânsito. Porém, nunca me senti insegura com as pessoas. Pelo contrário, o que me deu mais prazer foi andar pelas ruas, autênticas feiras, e falar com as pessoas. São afáveis e sempre dispostas a falarem e a explicarem o que é isto, porque é aquilo, o que fazer ou onde ir a seguir. Apesar das ruas parecerem feiras, visitar a de Anjuna em Goa foi absolutamente fantástico. Foi lá que encontrei uma lisboeta, em absoluto estado de delírio com a Índia. As cores dos tecidos, os incensos e as especiarias misturavam-se com os feirantes de roupas pesadas e jóias em prata enormes, que não queriam que eu experimentasse por não serem adequadas para uma turista.
Na Índia, o cansaço é sempre compensado pelas cores, pela experiência nos contactos com as pessoas, pela visão dos contrastes entre o belo e o pobre (que se complementam sem se contradizerem). Chorei. Várias vezes chorei pelo confronto com a experiência. Lágrimas provocadas pelo excesso. Excesso de beleza. Excesso de pobreza. Excesso de partilha. Chorei com a dona de uma ourivesaria, enquanto os olhos dela se enchiam de lágrimas a ouvir a tradução do que lhe tinha escrito no livro de visitas. Chorei na viagem de Jodhpur quando um rapaz me mostrou um álbum de fotografias de umas férias dele com amigos, num amanhecer frio, dentro de uma camioneta quase a desfazer-se, com a única intenção de partilhar com uma estrangeira de ar exausto, depois de 6 horas num comboio, com um lenço colorido na cabeça e cabelos desgrenhados, o que tinha vivido.
Quem foi e se apaixonou, não volta a mesma pessoa. Não volta a deixar de apreciar os sentidos, cada um a seu tempo. Nem a vontade de partilhar o que sentiu. Como ao escrever este texto, enquanto ouço a música que ouvi naquela loja de Pushkar, sentada no chão para escolher os CD`s que queria comprar. Sempre com a calma exigida pelos indianos, sempre com os pés descalços e o altar ao fundo, o incenso e as flores amarelos e alaranjados a enfeitar. Resta-me a palavra, a única que aprendi de facto: Namasté*! Namasté à chegada e à partida.