terça-feira, 6 de maio de 2008

Com uma rosa presa no cabelo


"(...)Tinha chovido miúda e subtilmente, como em quase todos os dias 31 de Março em Atacama. Quando me pus de pé, vi que o deserto estava vermelho, intensamente vermelho, coberto de pequenas flores cor de sangue.
- Ali as tens. As rosas do deserto, as rosas de Atacama. (...) As plantas continuam ali, debaixo da terra salgada. Continuam lá e florescem uma vez por ano. Ao meio-dia já estarão calcinadas pelo sol".
Luís Sepúlveda, In As Rosas de Atacama

Esta foi a melhor frase que consegui encontrar para iniciar esta viagem iniciada na fronteira do Chile com a Argentina, algures no meio de um calor árido e seco. Passa-se a fronteira da Argentina e começa-se uma viagem pelo deserto até se chegar à fronteira do Chile já em San Pedro de Atacama. Parece que antes da fronteira a terra é de ninguém. O sistema fronteiriço avariado e, ali presa na fronteira na entrada daquela pequena cidade, apaixonei-me pelo deserto.

Acho que foram as Rosas de Atacama que me criaram o desejo de entrar no Chile pelo Norte. É um deserto de terra, rodeado por vulcões e sem vegetação. Parece que não tem estradas e durante a viagem perguntava-me como é que o autocarro sabia para onde ia. A cidade, vista da fronteira não é bonita. Pode até parecer feia, pequena e abandonada. O calor abundante fazia com que os cães andassem ali a vaguear pelas sombras e que parecesse ainda mais fantasmagoricamente abandonada. No entanto, sem que consiga explicar bem, apaixonei-me de imediato pelo lugar. Parece que entrei em modo contemplativo. Aconteceu-me três vezes e meia na vida, esta sensação de abandono do corpo. Este foi um desses locais, em que falar deixa de ser uma necessidade e, os olhos parecem flutuar de um lugar para o outro. Ainda agora, só por me lembrar daquele lugar sinto-me assim como que paralisada pela beleza do que vi, mas mais ainda pela sensação de paz que experimentei naquele lugar.

A cidade depois de se passar a porta de entrada, mostra-se em toda a sua beleza. Casas baixas de pedra e com cores em tons de laranja e azuis. Cheia de charme, vive de e para o turismo. No entanto, os turistas que a procuram fundem-se no espírito perdido do deserto. É importante sentir um pouco de tudo: conversar com os locais sobre tradições, histórias de fantasmas e da sua própria vida; conversar com os turistas que quando ali chegam carregam um infindável número de quilómetros percorridos e todas as experiências; percorrer o Salar, as lagoas, os Géisers, os vulcões. Na praça principal tinha um restaurante com um empregado que parecia um pirata. Vindo de uma aldeia onde as temperaturas chegam aos 50 graus e, desertificada desde que fecharam as minas. Todos os anos os antigos moradores vão lá para uma festa que dura mais do que um dia, como que para lembrar o passado que morreu com a mina. Com um amor por gatos indescritível e que contava velhas histórias sobre os fantasmas daquela zona. Ou então passar o dia deitada numa rede, a ler e a conversar por quem passava ali, para alugar um quarto ou já depois de se ter acomodado. Ou então, alugar um condutor que conduza aos belos lugares ali à volta: Ver os Flamingos no Salar de Atacama, subir até aos 4000 metros para ver as lagoas rodeadas de vulcões, passear na Quebrada de Jerez onde Inês de Suarez plantou as sementes levadas de Espanha. Despedi-me daquele deserto prometendo nunca o esquecer e se pudesse voltar um dia para me voltar a perder no seu espírito.

As viagens de autocarro naquelas terras não são fáceis, mas vêem-se as paisagens e como é que vão mudando conforme se anda para sul. Ir de autocarro de San Pedro de Atacama até ao centro do país permite ir apreciando as vinhas de um lado e o mar do outro. Senti-me num país mesmo estreito. Valparaíso foi a paragem final depois de 25 horas.

Quem nunca viu aquela peça de Pablo Neruda sobre os imigrantes que deixavam o Chile através da Baía de Valparaíso? Não considero imprescindível para conhecer a cidade dos sete patamares, mas ajuda a perceber a história daquele bocadinho de Chile de casas coloridas e onde Neruda tinha uma das suas casas no cimo desses patamares, onde viveu alguns anos e de onde via todos os anos o fogo do ano novo sobre o mar. Durante a ditadura de Pinochet, os artistas tinham uma subcultura naquela cidade, refugiando-se na escuridão das casas, com vistas maravilhosas sobre a baía. Depois da ditadura como forma de festejo, todas as sextas feiras, durante os anos seguintes, era habitual abrirem as suas portas para quem quisesse entrar e partilhar a sua arte. Actualmente já não é um costume tão difundido, mas mesmo assim, entrei na casa de dois artistas de idade avançada que anunciavam num papel pendurado na porta que davam lições de magia. Quase como que se tratasse de uma instalação no conforto da sua casa e onde todos, estranhos ou não, podiam entrar para conversar. Também não admira que tenham o Museu a Céu Aberto, uma vez que toda a cidade parece um museu de murais e grafites. Neste museu encontram-se alguns dos murais mais interessantes que a cidade tem. No entanto, por toda a cidade se sente o colorido da criatividade e da agitação cultural.

Ainda no rasto de Pablo Neruda, segui viagem até La Isla Negra. Uma vila piscatória, como outras por aquelas bandas, mas com o cunho de ter sido palco de muitas passagens do poeta, que gostava do mar. De Valparaíso até lá vêem-se várias praias semelhantes, mas se seguirmos para norte de Valparaíso também se vêem os pescadores nas suas vilas cinzentas. Parece-me importante, confessar que apesar de ser Verão e de estarmos perante o Pacífico, não se pode esperar por fazer praia. Existem explicações meteorológicas, que eu não vou explicar, mas que ensinam o porquê de uma neblina constante durante praticamente todo o dia.

Quando estava em Santiago do Chile, a capital deste país, lembrava-me apenas do deserto e do Norte. Como que uma vontade presa na garganta de não entrar no avião e de regressar novamente aos Andes e de seguir viagem para o outro lado. Rumo à promessa da Bolívia.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

De Buenos Aires à Patagónia; Da Patagónia à Quebrada de Humahuaca

De Buenos Aires à Patagónia. Da Patagónia à Quebrada de Humahuaca. Para se conhecer a Argentina tem de se ir de uma ponta à outra. Encontram-se paisagens e pessoas tão diferentes que não me deixa falar de uma só Argentina. O Tango ouve-se em Buenos Aires. O gelo corta a paisagem a sul, na Patagónia e, os incas deixaram os descendentes nas montanhas do Norte. Nenhum destes estilos se cruza em lugar algum. Tem de se percorrer o país de lés a lés para se entender o que é argentina para além da capital.


Se alguém me perguntasse onde deveria ficar em Buenos Aires não hesitaria em aconselhar o Bairro de San Telmo, entre La Boca e a Avenida 9 de Julho. Daqui pode ir-se a pé para todos os sítios interessantes da cidade. Este bairro de casas de início de século foi, em tempos, onde os artistas viviam, onde as casas de Tango se amontoavam e, onde a história das ruas esconde muitos amores. Tem pequenos restaurantes acolhedores, lojas de antiguidades e artesãos nas ruas. Varandas que dão para os jardins e onde se pode ver dançar o Tango. O ar é vermelho e preto. Entre a paixão e a dor. Nada é neutro. Ou se sente tudo ou não se sente. Os vinhos argentinos são quentes e aveludados. Tal como o ambiente que se vive na maioria dos locais desta capital da América Latina. A influência de um Paris de outros tempos é tão marcada que às vezes, esperava ouvir falar francês. Parece que a Evita Péron ainda vive por ali, ao virar de uma esquina qualquer ou que, Gardel está num clube qualquer e, que a sedução da cidade se mistura com a sedução de cada um. Vêem-se diferenças acentuadas entre as zonas da cidade. Não é aconselhável ir para La Boca ao entardecer como fui, porque depois não existem táxis naquela zona. Actualmente é apenas a beleza do Caminhito e a procura de um bairro que já não é realmente como se espera. Ali situam-se os bairros mais pobres e um dos estádios mais emblemáticos. O futebol é levado muito a sério entre os rivais e por isso é melhor ter cuidado em dias de jogo.


É com um sabor aveludado que se deixa Buenos Aires para se ir para a Patagónia. Passa-se do calor do vermelho para o Pólo Sul frio, gélido e branco. O avião começa a sobrevoar montanhas geladas, para aterrar nas margens de um lago azul imaculado, alimentado pelo Glaciar de Perito Moreno. Fiquei em El Calafate, que fica a um passo da Terra do Fogo. A Terra do Fogo só vi do avião. El Calafate é ponto de partida para vários passeios, e daqui pode ir-se até ao Parque dos Glaciares, onde se situa um dos principais glaciares. O dia começa cedo e, prolonga-se para lá das 22 horas. Com um frio seco no ar, o sol é quente. Uma vila demasiado turística, preparada como se fosse de papel e se pudesse desmontar, como descreveu um Espanhol que conheci dias depois no Norte. Contudo a serenidade que o ar fresco deixa antever é uma qualidade a aproveitar em terras do Sul. E claro que a magnificência do Glaciar é imperdível. São 60 metros de gelo maciço que se estendem por 15 Kms. A viagem de barco deixa o corpo gelado pela proximidade daquele gelo. De um lado o sol e o calor, do outro o gelo, as nuvens e o frio. São contrastes que se admira demoradamente. Aqui não é a cultura nem as pessoas que surpreendem, mas sim a cor do dia, do vento e do gelo. E foi depois disto que subi para o Norte.


Património Mundial a Quebrada de Humahuaca é encantadora. Já não se ouve o Tango, nem se sente o gelo. No norte da Argentina, o dia é quente e, as noites muito frias, mesmo no verão. Fiquei em Tilcara que fica mesmo no meio desta quebrada andina, onde se podem visitar as ruínas da Pucará, a vila de Humamhuaca, a Paleta do Pintor em Purmamarca e as Salinas Grandes, pela Nacional 40. As gentes são simples e vivem do turismo e da agricultura. Afastadas das grandes cidades, apresentam-se de vestimentas coloridas com os bebes às costas atados por tecidos, peles muito queimadas pelo sol e de uma simpatia tímida. A beleza desta província começa em Salta, pequena cidade verde e vai até às Salinas Grandes, passando pelas várias vilas pré- hispânicas. Não sei bem descrever qual destes pontos gostei mais. Fiquei impressionada com as ruínas disfarçadas no meio da montanha para defender durante as invasões; com a beleza do pôr-do-sol a bater nas rochas; com as diferentes cores que a terra tem; com a altitude da nacional 40 e, como seria de esperar com o modus vivendis nas Salinas Grandes, onde a extensão de sal é até perder de vistas e os homens que ali trabalham estão todos cobertos de panos brancos com as mãos ressequidas de trabalhar no sal.


Se vivesse na Argentina era em Buenos Aires, pelo colorido em tons de vermelho, pela sonoridade e cultura e pela beleza, mas teria de voltar ao Norte para encontrar as pessoas e a beleza Natural. De Buenos Aires, a capital da luxúria à Patagónia, a capital da solidão. Da capital da solidão até à Quebrada de Humahuaca, a capital da terra.